"Cadeia? Claro que o sistema não quis. Esconde o que a novela não diz." Os versos da música "Diário de um detento", do grupo de rap Racionais Mc's, retratam bem o que são as penitenciárias brasileiras: nossos centros de amnésia.
Lá, são jogados diariamente aqueles que a sociedade quer esquecer, seu refugo. A massa carcerária é a sobra das escolas públicas, da falência de políticas de saúde, moradia, saneamento básico. São aqueles que nunca foram prioridade fora das cadeias e continuam não sendo dentro delas. Um dado do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, ilustra isso: 65% dos detentos não completaram o ensino fundamental.
Por isso, as tragédias cotidianas dos presídios só viram assunto nacional quando atingem o limite da barbárie e extrapolam as cercas das unidades. Cabeças podem ser cortadas desde que não sejam exibidas em público. O problema é que, no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luiz do Maranhão, onde 62 detentos foram mortos sob um silêncio ensurdecedor no ano passado, um vídeo gravado pelos presos jogou as cabeças para o outro lado dos muros.
Um exemplo destas mudas e invisíveis tragédias é a morte de M.R.T.S., que cumpria pena na Penitenciária Alfredo Tranjan, mais conhecida como Bangu II, localizada no Complexo de Gericinó, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Soropositivo, ele contraiu tuberculose e hepatite viral na cadeia. Apesar de a unidade estar superlotada - são 1.445 presos para 960 lugares - o que aumenta o risco de epidemias, M. não foi devidamente tratado e continuou em sua cela.
Seu estado se agravou e, no fim do ano passado, ele começou a vomitar sangue. Como não tinha forças para levantar, e não havia assistência da direção do presídio, seus próprios colegas tinham que limpar o local, sob o risco de contraírem alguma das doenças. Depois de muita agonia, M. foi levado para o Hospital Dr. Hamilton Agostinho Vieira de Castro, no Complexo de Gericinó, mas morreu no dia 14 de janeiro.
Segundo o relatório de 2013 do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, criado em 2010 por uma lei de minha autoria para fiscalizar locais onde há pessoas privadas de liberdade, o atendimento à saúde no estado é precário. Das 54 unidades, 17 foram visitadas, sendo dois hospitais psiquiátricos. Uma enfermeira entrevistada pelo grupo afirmou que trabalha "fazendo milagres", por faltarem profissionais e sobrarem remédios e seringas fora de validade.
Apesar de as enfermidades mais comuns serem dermatológicas e respiratórias, como tuberculose e pneumonia, faltam especialistas nessas áreas. Nas unidades femininas, não há ginecologistas.
Para piorar, a estrutura de masmorra e a falta de material de higiene colaboram com a disseminação de doenças. "Precária iluminação e ventilação, má conservação da rede de esgoto, acúmulo de lixo, condição degradada das celas e ausência de ambiente sanitário adequado. (...) não disponibilização de água filtrada para o consumo dos detidos, falta de camas, colchões, roupa de cama, uniformes, materiais de higiene e remédios", informa o relatório.
Se o assunto é trabalho, também não há o que comemorar no Brasil, e muito menos no estado do Rio. Enquanto a média nacional de detentos exercendo alguma atividade é de 20% dos cerca de 550 mil presos, apenas 2% da população carcerária do Rio trabalha. Nas celas fluminenses, se amontoam cerca de 34 mil pessoas. São prisões de ociosidade máxima.
Além de todos estes problemas, os investimentos em melhorias na infraestrutura, na qualificação dos servidores e na realização de concursos públicos não acompanham o assustador crescimento da população carcerária no país. Segundo o Depen, entre 1990 e 2012, a quantidade de presos cresceu de 511%.
Essa lógica é cruel e consolida um processo perverso de exclusão. O resultado é a completa falta de perspectiva, que monstrifica e expõe o limite a que o ser humano pode chegar: a barbárie absoluta.
É assim que nascem e se fortalecem as facções. Não concordo com quem as chama de crime organizado, porque este acontece na ciranda financeira, com um projeto de poder dentro da estrutura do estado, e não num ambiente caótico, de violência extrema.
As facções são grifes do medo, sua linguagem é a barbárie. Grande parte dos detentos adere a elas por uma questão de sobrevivência - fora das cadeias, muitos deles não integravam grandes quadrilhas. As péssimas condições dos presídios fazem com que os presos fiquem à mercê delas.
A canção dos Racionais Mc's desvenda essa alquimia da animalização nas prisões brasileiras: "abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo. Misture bem essa química. Pronto: eis um novo detento". O antídoto para este veneno de decadência humana é oferecer esperança, com políticas públicas voltadas para os presos.
Minha experiência com o sistema carcerário é longa. Comecei a trabalhar como professor de História aos 22 anos, em 1989. Depois participei de projetos de prevenção à Aids e negociei rebeliões duríssimas. Mas o período em que dei aula me marcou muito.
Vi claramente que o acesso a uma escola de qualidade mudava completamente o perfil da maioria deles. Muitos entravam reafirmando seus vínculos com o crime, com as facções. Com o tempo, o acesso à leitura e a outra visão de mundo criavam novas perspectivas. Esse é o grande elemento. Se o Estado oferecer algo diferente da barbárie, a prisão funcionará de outra forma. Quando os detentos percebiam que poderiam ser diferentes, muitos seguiam outro caminho.
Um dos presos me dizia o tempo inteiro que voltaria para o crime quando deixasse a prisão. Uma vez, o vi lendo Jubiabá, de Jorge Amado, e fiz uma provocação. Falei que bandido perigoso não lê Jorge Amado. Ele, então, respondeu que era ainda mais perigoso, porque tinha aprendido a ler.
É importante que a sociedade entenda que a falta de políticas públicas e a tolerância a estes massacres repercutem negativamente na própria sociedade. Qual comportamento nós devemos esperar de alguém tratado como animal por anos? Essa não é só uma questão humanitária, é também pragmática.
Por isso, encerro está reflexão com mais uma provocação dos Racionais Mc's, por acreditar que é preciso construir um novo olhar sobre os detentos e o sistema carcerário. "Mais um metrô vai passar, com gente de bem, apressada, católica. Lendo jornal, satisfeita, hipócrita. Com raiva por dentro, a caminho do Centro. Olhando pra cá, curiosos, é lógico. Não, não é não, não é o zoológico."
do site PSOL50
Lá, são jogados diariamente aqueles que a sociedade quer esquecer, seu refugo. A massa carcerária é a sobra das escolas públicas, da falência de políticas de saúde, moradia, saneamento básico. São aqueles que nunca foram prioridade fora das cadeias e continuam não sendo dentro delas. Um dado do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, ilustra isso: 65% dos detentos não completaram o ensino fundamental.
Por isso, as tragédias cotidianas dos presídios só viram assunto nacional quando atingem o limite da barbárie e extrapolam as cercas das unidades. Cabeças podem ser cortadas desde que não sejam exibidas em público. O problema é que, no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luiz do Maranhão, onde 62 detentos foram mortos sob um silêncio ensurdecedor no ano passado, um vídeo gravado pelos presos jogou as cabeças para o outro lado dos muros.
Um exemplo destas mudas e invisíveis tragédias é a morte de M.R.T.S., que cumpria pena na Penitenciária Alfredo Tranjan, mais conhecida como Bangu II, localizada no Complexo de Gericinó, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Soropositivo, ele contraiu tuberculose e hepatite viral na cadeia. Apesar de a unidade estar superlotada - são 1.445 presos para 960 lugares - o que aumenta o risco de epidemias, M. não foi devidamente tratado e continuou em sua cela.
Seu estado se agravou e, no fim do ano passado, ele começou a vomitar sangue. Como não tinha forças para levantar, e não havia assistência da direção do presídio, seus próprios colegas tinham que limpar o local, sob o risco de contraírem alguma das doenças. Depois de muita agonia, M. foi levado para o Hospital Dr. Hamilton Agostinho Vieira de Castro, no Complexo de Gericinó, mas morreu no dia 14 de janeiro.
Segundo o relatório de 2013 do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, criado em 2010 por uma lei de minha autoria para fiscalizar locais onde há pessoas privadas de liberdade, o atendimento à saúde no estado é precário. Das 54 unidades, 17 foram visitadas, sendo dois hospitais psiquiátricos. Uma enfermeira entrevistada pelo grupo afirmou que trabalha "fazendo milagres", por faltarem profissionais e sobrarem remédios e seringas fora de validade.
Apesar de as enfermidades mais comuns serem dermatológicas e respiratórias, como tuberculose e pneumonia, faltam especialistas nessas áreas. Nas unidades femininas, não há ginecologistas.
Para piorar, a estrutura de masmorra e a falta de material de higiene colaboram com a disseminação de doenças. "Precária iluminação e ventilação, má conservação da rede de esgoto, acúmulo de lixo, condição degradada das celas e ausência de ambiente sanitário adequado. (...) não disponibilização de água filtrada para o consumo dos detidos, falta de camas, colchões, roupa de cama, uniformes, materiais de higiene e remédios", informa o relatório.
Se o assunto é trabalho, também não há o que comemorar no Brasil, e muito menos no estado do Rio. Enquanto a média nacional de detentos exercendo alguma atividade é de 20% dos cerca de 550 mil presos, apenas 2% da população carcerária do Rio trabalha. Nas celas fluminenses, se amontoam cerca de 34 mil pessoas. São prisões de ociosidade máxima.
Além de todos estes problemas, os investimentos em melhorias na infraestrutura, na qualificação dos servidores e na realização de concursos públicos não acompanham o assustador crescimento da população carcerária no país. Segundo o Depen, entre 1990 e 2012, a quantidade de presos cresceu de 511%.
Essa lógica é cruel e consolida um processo perverso de exclusão. O resultado é a completa falta de perspectiva, que monstrifica e expõe o limite a que o ser humano pode chegar: a barbárie absoluta.
É assim que nascem e se fortalecem as facções. Não concordo com quem as chama de crime organizado, porque este acontece na ciranda financeira, com um projeto de poder dentro da estrutura do estado, e não num ambiente caótico, de violência extrema.
As facções são grifes do medo, sua linguagem é a barbárie. Grande parte dos detentos adere a elas por uma questão de sobrevivência - fora das cadeias, muitos deles não integravam grandes quadrilhas. As péssimas condições dos presídios fazem com que os presos fiquem à mercê delas.
A canção dos Racionais Mc's desvenda essa alquimia da animalização nas prisões brasileiras: "abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo. Misture bem essa química. Pronto: eis um novo detento". O antídoto para este veneno de decadência humana é oferecer esperança, com políticas públicas voltadas para os presos.
Minha experiência com o sistema carcerário é longa. Comecei a trabalhar como professor de História aos 22 anos, em 1989. Depois participei de projetos de prevenção à Aids e negociei rebeliões duríssimas. Mas o período em que dei aula me marcou muito.
Vi claramente que o acesso a uma escola de qualidade mudava completamente o perfil da maioria deles. Muitos entravam reafirmando seus vínculos com o crime, com as facções. Com o tempo, o acesso à leitura e a outra visão de mundo criavam novas perspectivas. Esse é o grande elemento. Se o Estado oferecer algo diferente da barbárie, a prisão funcionará de outra forma. Quando os detentos percebiam que poderiam ser diferentes, muitos seguiam outro caminho.
Um dos presos me dizia o tempo inteiro que voltaria para o crime quando deixasse a prisão. Uma vez, o vi lendo Jubiabá, de Jorge Amado, e fiz uma provocação. Falei que bandido perigoso não lê Jorge Amado. Ele, então, respondeu que era ainda mais perigoso, porque tinha aprendido a ler.
É importante que a sociedade entenda que a falta de políticas públicas e a tolerância a estes massacres repercutem negativamente na própria sociedade. Qual comportamento nós devemos esperar de alguém tratado como animal por anos? Essa não é só uma questão humanitária, é também pragmática.
Por isso, encerro está reflexão com mais uma provocação dos Racionais Mc's, por acreditar que é preciso construir um novo olhar sobre os detentos e o sistema carcerário. "Mais um metrô vai passar, com gente de bem, apressada, católica. Lendo jornal, satisfeita, hipócrita. Com raiva por dentro, a caminho do Centro. Olhando pra cá, curiosos, é lógico. Não, não é não, não é o zoológico."
do site PSOL50
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